Escrito por: Rafael Viana e o prof. Jose Manoel Seixas
A MURABEI firmou uma colaboração com o LPS (Laboratório de Processamento de Sinais), vinculado à Coppe/UFRJ, para o teste de modelos neurais no desenvolvimento de um conjunto de classificadores baseado em aprendizagem de máquina para identificação de partículas de altas energias no contexto do sistema de filtragem online de eventos do experimento ATLAS (do inglês, A Toroidal LHC ApparatuS), um dos principais experimentos do Grande Colisor de Hádrons (Large Hadron Collider, ou simplesmente LHC), que é o maior e mais poderoso acelerador de partículas em operação do mundo, pertencente à Organização Europeia para Pesquisas Nucleares (CERN).
A concepção do LHC enquanto projeto representou uma grande conquista para a humanidade, posto que visou (e ainda busca) saciar o desejo primordial do Homem de entender a composição e funcionamento do universo e da matéria que o compõe. Mas qual é a ideia básica de um acelerador de partículas? Por que colidir feixes de partículas aceleradas nos fornece melhor compreensão da matéria e da origem do universo? Uma analogia bem simples é pensar na matéria como um grande cubo mágico embaralhado. Qual a melhor forma de montá-lo e de desvendar seu segredo? Basta atirar o cubo contra uma parede para desmontá-lo, assim é só construí-lo de volta! No caso do LHC, feixes contendo conjuntos (pacotes) de prótons (que são hádrons, isto é, partículas compostas por um estado ligado de quarks, as quais mantém sua coesão interna devido à força nuclear forte, segundo o modelo padrão da Mecânica Quântica, daí ser um colisor de hádrons) são acelerados e postos para colidir a altíssimas taxas em pontos específicos, onde localizam-se os experimentos, como o ATLAS, que nada mais são que um complexo conjunto de sistemas de detecção (sensores) – originalmente, o ATLAS foi projetado para operar com colisões desses pacotes a cada 25ns. O grande objetivo dessas colisões é fragmentar os prótons em partículas fundamentais, as quais, segundo a teoria, foram formadas nos primeiros instantes após o Big Bang.
Umas das mais importantes descobertas feitas pela equipe dos cientistas do ATLAS – que, inclusive, rendeu um prêmio Nobel à equipe – aconteceu em 2013: a observação da “partícula de Deus”, o bóson de Higgs. Todo o conhecimento a respeito da natureza da matéria e das interações entre as partículas faz parte do que hoje é chamado de modelo padrão. Nele, há um grupo de partículas constituintes da matéria que são intermediárias das forças da natureza: os bósons. De maneira bem geral, a interação dos campos das partículas com o campo de Higgs confere massa àquelas. Uma forma de visualizar o fenômeno é pensar em uma festa repleta de pessoas (partículas); quando uma celebridade (o bóson Higgs) comparece, imediatamente uma aglomeração irá ser formada ao redor da estrela da festa. Esta “aglomeração” é a estrutura que chamamos de massa.
Contudo, objetos físicos como o bóson de Higgs são extremamente raros de serem observados. Na verdade, a esmagadora maioria das partículas formadas nos processos de colisão de partículas no ATLAS é considerada de “Física ordinária”, não sendo, portanto, de interesse das análises físicas posteriores. Assim, operar a altas taxas de colisão é necessário para gerar um número de partículas a fim de acumular estatística suficiente para observar tais eventos raros. Dessa forma, o ATLAS depende fortemente do seu sistema de filtragem online, conhecido como trigger, a fim de descartar esses eventos ordinários e preservar a Física de interesse. O trigger recebe um grande volume de dados por evento de cruzamento de pacotes (cerca de 52 TB/s) produzido por partículas que interagem com os sistemas de detecção, como o de calorimetria, cujo objetivo é medir a energia das partículas incidentes. O sistema de filtragem online do ATLAS é dividido em dois níveis sequenciais de operação, com o primeiro baseado em hardware, enquanto que o segundo, por software. O segundo nível é ainda subdividido em duas etapas de processamento: rápida e precisa. Atualmente, o método de seleção na etapa rápida baseado em calorimetria para detectar elétrons (Neuralringer) emprega redes neurais de multicamadas de percéptrons (MLPs) para intervalos de pseudorapidez (η) – variável que surge do sistema de coordenas empregado no ATLAS, a qual representa a direção da projeção das partículas após a colisão – e energia transversa (ET) – grandeza que representa a fração da energia que é projetada perpendicularmente ao feixe de partículas -, formando, assim, uma solução em ensemble (conjunto) de modelos. Estas redes neurais operam sobre uma informação de calorimetria que é formada por meio de anéis concêntricos de deposição de energia.
Como mencionado, o princípio de funcionamento dos calorímetros que compõem o sistema de calorimetria é medir a energia depositada ao longo de suas camadas pelas partículas oriundas dos processos de colisão. O que ocorre é que as partículas, quando se desenvolvem no calorímetro, sofrem processos de decaimentos sucessivos que culminam na formação de outras partículas e na deposição gradual de sua energia nas células que formam os calorímetros até a completa dissipação desta, processo conhecido como chuveiro de partículas. Uma maneira fácil de visualizar é pensar esses chuveiros como minúsculos fogos de artifícios, que passam a se espalhar tanto lateralmente quanto longitudinalmente, e se esvaem, dissipando sua energia conforme crescem. Cada partícula tem seu chuveiro próprio, de maneira que, ao caracterizar o seu desenvolvimento, torna-se possível identificar de qual evento físico se trata.
O sistema de calorimetria do ATLAS foi projetado especificamente para detectar fótons, elétrons e hádrons. O processo de decaimento de elétrons e fótons no calorímetro se dá com a formação de chuveiros que agregam, em sua grande maioria, partículas eletromagnéticas (fótons e elétrons). Por outro lado, os chuveiros hadônicos, mais profundos e largos, agregam tanto partículas hadrônicas (em maior quantidade), quanto partículas eletromagnéticas, de maneira que estas cascatas ficam retidas na mesma camada do calorímetro que os chuveiros de fótons e elétrons, falseando suas assinaturas. Os modelos neurais do Neuralringer olham justamente para o desenvolvimento desses chuveiros: através da identificação de padrões de deposição energética no calorímetro, estes classificadores são capazes de identificar elétrons. Na verdade, o que os modelos de redes neurais classificam é uma informação específica que descreve o desenvolvimento dos chuveiros: a informação anelada. Ela é gerada a partir de um algoritmo que seleciona uma janela do calorímetro contendo a energia depositada pela partícula incidente e agrupa suas as células de maneira a formar anéis concêntricos de energia centrados na chamada “célula mais quente”, célula por onde a partícula penetrou no detector. Quando isso é feito sobre uma janela do calorímetro, é possível obter uma descrição do desenvolvimento lateral do chuveiro. Ao repetir esse processo de formação de anéis de energia ao longo das amostras longitudinais do calorímetro, ao longo de suas camadas e seções, detém-se de uma representação bem razoável que mantém tanto as nuances do desenvolvimento longitudinal quanto lateral do chuveiro.
O trabalho iniciado pelo LPS, e que agora conta com a colaboração da MURABEI, objetiva expandir a estratégia do NeuralRinger para a detecção de fótons, uma vez que essas partículas são muitas vezes resultados de processos de decaimento de eventos de interesse, como o próprio bóson de Higgs. O projeto conta, atualmente, com duas vertentes: a primeira é baseada no paradigma de transferência de aprendizagem (do inglês, Transfer Learning) das redes neurais de elétrons. Posto que a interação de fótons e elétrons com a matéria que compõe o calorímetro é de mesma natureza (eletromagnética) e que os chuveiros dessas duas partículas são incrivelmente parecidos, o aprendizado adquirido (atributos) pela rede treinada com dados de elétrons será transferido para a construção de uma nova rede neural, a qual tem seu treinamento refinado com dados de fótons. A segunda vertente, por outro lado, consiste em desenvolver um ensemble de redes neurais dedicadas, isto é, treinadas apenas com dados de fótons, sem transferência de aprendizado, e é esta a metodologia a ser explorada no contexto da colaboração. O intuito é identificar qual método obtem melhor desempenho no que tange à operação no trigger de fótons, tanto em comparação com o método mais tradicional empregado, o qual é baseado em cortes sobre variáveis discriminantes de calorimetria (Cutbased) que informam diferentes características do desenvolvimento dos chuveiros – logo, não opera sobre a informação anelada-, quanto em comparação entre si.
A participação da equipe brasileira no CERN é um projeto que vem sendo desenvolvido e ampliado nos últimos anos. A Coope/UFRJ é responsável por 30 projetos de engenharia dentro de três dos principais experimentos do LHC – ATLAS, ALICE e LHCb, como o próprio Neuralringer mencionado acima. Concretizando a participação ativa dos cientistas brasileiros nesta grande colaboração internacional, o conselho do CERN aprovou em setembro de 2021, a adesão do país como membro associado. Segundo a Sociedade Brasileira de Física (SBF), a efetiva adesão do Brasil ao maior laboratório de Física de partículas do mundo é o estopim para o desenvolvimento da indústria nacional nesse contexto, uma vez que não só abrirá espaço para competição nos processos licitatórios, como também irá gerar estímulo para inovação e desenvolvimento tecnológico, ações que muitas vezes surgem da parceria de grupos de pesquisa com empresas de tecnologia, tal como esta colaboração firmada entre o LPS e a MURABEI.
FONTE DAS FIGURAS:
Fig. 1: retirada de https://atlas.cern/about.
Fig. 2: retirada e adaptada de https://atlas.cern/discover/detector.
Fig. 3: retirada de https://cds.cern.ch/record/1505342.